Camillo Sicherle
I. Introdução
O termo “governança corporativa” (ou apenas “governança”) já tem algum tempo incorporou-se ao vocabulário corrente das pessoas, como sinônimo de organização e transparência no trato das informações necessárias para a condução eficiente de uma organização titular de um patrimônio (conjunto de bens, direitos e obrigações), seja ela uma família, uma empresa ou uma entidade sem fins lucrativos.
Companhias abertas, empresas de grande porte e fundações têm parâmetros de governança definidos em lei, estatutos de autorregulação e códigos de “melhores práticas”. Para estas organizações, governança é parte do dia a dia, e o desafio está mais em fazer com que a governança instalada funcione do que propriamente criá-la “do zero”.
Empreendedores donos de PMEs (“Pequenas e Médias Empresas”), porém, não tem um parâmetro mínimo legal de governança suficientemente estruturado para poder auxiliá-las efetivamente na gestão de seus patrimônios. Cada uma deve “inventar” o seu. Nossa intenção, com este artigo, é indicar alguns elementos práticos que possam facilitar a instituição de mecanismos básicos de governança para empreendedores e suas empresas.
II. Princípios Básicos
O IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa), elege quatro princípios básicos da boa governança. São eles: transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa. Para PMEs, preferimos reduzi-los a três: informação de qualidade, comunicação eficiente e disciplina.
Informação de Qualidade. Informação de qualidade é aquela que se apresenta precisa, completa e atualizada. Convivemos, hoje, com um excesso de informações instantâneas, pontuais e de duvidosa procedência, o que nos dá uma falsa noção de estarmos informados e introduz uma série de “vieses” momentâneos em nosso processo de tomada de decisão. Informação de qualidade, é aquela coletada de fonte segura para ser trabalhada e organizada com objetivo específico, segundo uma metodologia pré-estabelecida. Para uma PME, os dados relevantes para organizar uma governança são aqueles relativos a ingressos e dispêndios financeiros em bases correntes, liquidez disponível, endividamento, reservas e orçamentos de médio e longo prazos. Completam esse quadro as imobilizações e mecanismos de segurança para enfrentar imprevistos. De tempos em tempos sugerimos tirar boas “fotografias” do que ocorre no mercado específico da empresa e do que tem feito a concorrência.
Comunicação Eficiente. Comunicação eficiente é aquela que alcança o seu destinatário, em tempo e formato que favoreçam sua plena compreensão e processamento, permitindo uma devolutiva rápida e construtiva desse indivíduo no processo de tomada de decisão da organização.
Nem todo mundo consegue (ou precisa) ler e entender planilhas de Excel com dezenas de linhas e colunas ou demonstrações financeiras demasiadamente detalhadas. O mesmo acontece com declarações de Imposto de Renda, extratos bancários e de investimentos ou contratos financeiros complexos. Mas todos que participam de um processo decisório precisam dispor do mínimo necessário para uma decisão informada, com a devida oportunidade para solicitar e receber eventuais esclarecimentos.
Disciplina. Não adianta fornecer informações pontualmente, em “mão única”, de vez em quando (ou, como é mais comum, “de vez em nunca”). Comunicação eficiente, para fins de governança de PMEs, se faz com contexto, debate e, sobretudo, disciplina: é inútil produzir informação de qualidade, comunicá-la a quem de direito de forma eficiente e não existir compromisso dos interessados com reunir-se para deliberar e agir. Omissão não é consentimento, mas deve ter consequências para quem se omite.
A construção de uma governança no âmbito de uma PME, portanto, consiste em identificar corretamente quem deve receber que tipo de informação, de quem, em que formato e quando, com o compromisso dessas pessoas reunirem-se periodicamente, devidamente preparadas, para discutir e deliberar especificamente sobre os rumos da organização, em hora e local predeterminados, registrando os principais pontos debatidos e decisões tomadas, para posterior conferência.
III. Desafios da Governança
PMEs são naturalmente intuitivas e informais no trato de seus negócios. Exceto em situações extremas, não há o hábito de se consultar profissionais especialistas, principalmente se forem considerados “caros”. É comum encaminhar demandas societárias e fiscais ao contador e executar o planejamento financeiro com base em extratos bancários e relatórios gerenciais “caseiros”, deixando para documentar direito apenas negócios de maior valor.
Se os desafios da boa governança de PMEs são produzir informação de qualidade, comunicá-la com quem de direito e ter a disciplina de formalizar as transações de maneira correta, algumas providências simples podem ajudar:
Contrate bons profissionais. Contabilidade, tributação, finanças e assuntos legais são extremamente complicados no Brasil, mesmo para quem tem um bom nível de educação e tempo para estudar o assunto.
Peça para seus consultores explicarem as regras e estude o que é lhe entregue. Nem sempre lemos o que assinamos ou certificamo-nos de que entendemos corretamente o que está escrito.
Construa um “painel de controle” adequado. O “dashboard” não necessita ser muito sofisticado ou extremamente detalhado. O importante é que traga as principais informações e que esteja razoavelmente atualizado.
Consulte o painel de controle e, se for o caso, os consultores externos, antes de decidir. De nada adianta ter e não usar.
Circule a informação. Acesso só não basta. A maioria das pessoas precisam ser lembradas e a melhor forma de conduzir esse assunto no plano da governança é encaminhar informações e, na sequência, fazer uma reunião específica para discuti-las, principalmente se o assunto for importante.
ATENÇÃO. Transparência não é sair mostrando tudo para todos, nem deixar que informações sensíveis sejam reproduzidas ou levadas para fora de ambientes controlados. Segredos existem e faz parte de qualquer negócio os proteger quando necessário ou interessante. Pessoas têm direito à privacidade e isso inclui qualquer informação de natureza patrimonial que não necessite por lei ser compartilhada. Na dúvida, é lícito e recomenda-se firmar um termo de confidencialidade antes de revelar informações sensíveis. Qualquer informação postada na Internet, na prática, torna-se pública para todos os efeitos.
Registre opiniões e decisões. Contra fatos, não há argumentos e é muito difícil documentar eventos retroativamente, principalmente quando as coisas não saem como programado.
Estabeleça mecanismos simples de verificação. Duas assinaturas, contas bancárias dedicadas, senhas de acesso, controles de estoque com código de barras ou QR Codes, formalização por e-mail (nada de WhatsApp) são medidas simples, baratas e eficazes.
Evite misturar contas pessoais com empresariais. Parece óbvio, mas ainda não é. Evite pagar empregados domésticos, combustível, celulares, apólices de seguro e cartões de crédito pessoais pela “firma”. Do ponto de vista da governança, confusão patrimonial é um tremendo calcanhar de Aquiles.
Evite sonegar impostos. O mundo mudou e a margem de manobra para fugir do Leão é pequena. Os fluxos financeiros eletrônicos são transparentes, monitorados e, na prática, não existe sigilo bancário contra o Fisco.
Proteja seus ativos. Bens materiais e imateriais têm regimes específicos e bastante detalhados de titulação e proteção jurídica. Isolar ativos de “patrimônio pessoal”, dos bens sujeitos a “riscos de negócio” também é importante. Para fins de boa governança, o custo com a proteção de ativos é uma despesa necessária.
Controle seu endividamento. No Brasil, onde inflação e taxas de juros são variáveis extremamente voláteis, aprender a lidar com endividamento é crucial. Falir, no Brasil, ainda não é uma opção.
Never run out of cash. No Brasil, a descontinuação de qualquer negócio é traumática e custosa, na melhor das hipóteses. Ter recursos para encerrar uma empresa regularmente é, portanto, o melhor caminho em uma situação de impasse e quanto mais em ordem com funcionários, o Fisco, fornecedores e credores a organização estiver, mais barato e simples (nunca rápido) será o processo de encerramento, mesmo que este se dê em ambiente de insolvência. Empreendedores não podem esquecer de proteger seu CPF, nem que seja para poder começar de novo.
IV. Governança e Documentação
Por fim, alguns pontos sobre documentação de uma PME:
O “básico”. É surpreendente a proporção de organizações de pequeno e médio porte que não tem o básico, muito menos atualizado. Por básico, entendemos atos constitutivos e alterações posteriores registradas tempestivamente, acordos de sócios e outros (regimentos internos etc.) que reflitam o praticado, demonstrações financeiras consistentes (balanço e DRE, pelo menos, ainda que o regime fiscal da pessoa jurídica em questão a “dispense” de manter contabilidade), principais contratos, licenças e alvarás, além de certidões negativas sacadas de tempos em tempos para ter certa a situação junto aos órgãos oficiais, fisco, etc.
O “necessário”. Além da documentação básica, o “kit” essencial sugerido inclui um “painel de controle” adequado ao porte e negócios da organização, uma agenda fixa de reuniões periódicas (mais ou menos frequentes, conforme a demanda) e um sistema de registro desses encontros (atas, PPTs, anotações).
O “desejável”. Juntar o “básico” com o “necessário” e encarregar uma pessoa na organização de manter os arquivos atualizados e organizados, em local centralizado e seguro, agendar os encontros, cobrar as pessoas envolvidas.
O “ideal”. Tornar o “desejável” uma rotina automática da organização. Acreditem, acontece e funciona.
ATENÇÃO. Uma das questões menos compreendidas nas organizações é a questão do acesso a documentos societários e a informações gerenciais: existem documentos públicos, existem documentos que a lei faculta acesso aos sócios e associados e existem informações e documentos que são privados da organização (que é uma pessoa jurídica distinta da de seus sócios e associados), cujo acesso não só pode como deve ser controlado por sua administração, sob pena de responsabilidade.
Comments